A magia que existe no café,

o presente e a presença da ancestralidade humana aliados ao legado encantador da biodinâmica, um ritual de saúde para a vida toda

Uma viagem sensorial pela história do café

por Kátia Bagnarelli,

com colaboração de Ensei Neto, consultor em Gestão Sensorial de Bebidas & Alimentos, um Coffeelosofer, amante da boa bebida, boa comida, boa conversa e bem viver.

 

575 antes de Cristo

Contam os relatos mais antigos que a descoberta do café pelo mundo se iniciou lá em 575 a.C.

Um pastor chamado Kaldi observou que suas cabras ficavam mais espertas ao comer as folhas e frutos do cafeeiro. Ele então experimentou os frutos e sentiu maior vivacidade em seu dia. Um monge da região, informado sobre o fato, começou a utilizar uma infusão de frutos para resistir ao sono enquanto orava.

Dizem que as tribos africanas, que conheciam o café também desde a Antiguidade, moíam seus grãos e faziam uma pasta utilizada para alimentar os animais e aumentar as forças dos guerreiros.

O café é originário das terras altas da Etiópia (possivelmente com culturas no Sudão e Quênia) transportado pelos mouros para o Egito e a Europa.

O Iêmen foi um centro de cultivo importante, de onde se propagou pelo resto do Mundo Árabe. O conhecimento dos efeitos da bebida disseminou-se e no século XVI o café era muito utilizado no Oriente.

Ensei Neto nos ensina com maestria o que está envolvido no processo de vida do café.

“A Natureza é um grande laboratório ou indústria a céu aberto e tem uma mecânica de funcionamento que é simplesmente perfeita, sempre sob rigorosa harmonia. Tudo na Natureza tende ao Equilíbrio. Nem de mais, nem de menos. Produz e utiliza apenas o que basta. Dentro dessa lógica, o ar que nos dá a vida é, ao mesmo tempo, aquele que nos tira.

O oxigênio é fundamental para que permaneçamos vivos; no entanto, o processo de envelhecimento nada mais é do que o resultado de uma série de reações de oxidação, que leva à falência das células e, portanto, ao inevitável fim da vida.

A fruta do cafeeiro, como se sabe, é classificada como não climatérica, o que significa que só atinge o amadurecimento enquanto estiver ligada à planta e, por isso, é o momento em que também se torna, digamos, independente a partir de sua senescência ou envelhecimento. Esta fase, após ficar madura ou cereja, fica representada pelo estágio passa, com a progressiva desidratação natural da fruta.

Os processos de pós colheita podem ser resumidos, de forma simplificada, numa única operação: secagem das sementes. A dinâmica ou velocidade de secagem define se subprocessos adicionais podem ocorrer, especialmente aqueles ligados à fermentação. A umidade da fruta madura fica em torno de 50% m/m, sendo que na polpa esse teor é maior, que tem em sua composição ainda açúcares, proteínas e outras substâncias em menor quantidade.

Num processo de secagem que segue um ritmo normal, basicamente ficam garantidos os grupos de substâncias formados durante o seu ciclo da fruta, conhecido como ciclo fenológico, que são basicamente os açúcares, resultado da fotossíntese e pelo acúmulo via metabolismo basal, e os ácidos, principalmente o cítrico, produzido durante a respiração.

Essa dupla dinâmica garante uma gama de sabores e aromas denominados de básicos ou clássicos, que todo excelente café deve respeitosamente apresentar na xícara.

Se a secagem for lenta ou muito lenta, há margem para que um grupo marginal contribua para a formação de sabores e aromas por sínteses diversas, que são os processos fermentativos.

Fungos, leveduras e bactérias podem chegar, se apoquetar e começar a trabalhar, exercendo seu fascinante poder de converter açúcares em substâncias que despertarão nosso olfato e paladar. Sim, a fermentação nada mais é do que resultado de uma secagem feita em câmera lenta. Detalhe: não pode ser excessivamente lenta.

Os defeitos capitais, o conhecido Trio Calafrio PVA – Preto ou Podre, Verde e Acético ou Ardido, à exceção do Verde, são decorrentes da morte da semente.

O ácido acético ou vinagre é formado depois que o Saccharomyces cerevisae transformou o açúcar em álcool e, em seguida, o Acetobacter faz a síntese acética. Sendo um ácido bastante agressivo, mata a semente do cafeeiro, literalmente transformando um lote candidato a potencial maravilha num desastrado ceviche vegano. Morte acética. Por outro lado, se a fermentação anaeróbica se prolongar demais, a semente morre por asfixia pura e simplesmente.

Não se esqueça de que a semente é um indivíduo que deve permanecer vivo até o momento da sua torra e o que certifica que assim continua, é sua respiração.

Como todo ser vivo, respira oxigênio para devolver gás carbônico à atmosfera. Costumo dizer que as sementes não podem ficar indefinidamente com o “nariz entupido”. É morte certa, que traz à tiracolo o apodrecimento. Observe que esses dois defeitos capitais são devidos à semente morta. A secagem “porteira adentro”, feita pelo cafeicultor, tem como princípio preservar os bons atributos dos grãos de café por meio da diminuição do processo metabólico (leia-se respiração e todas suas consequências…), descrito como estado de dormência. Respira-se, mas muito lentamente.

O teor de umidade que representa a quantidade de água livre é altamente relevante. Como fica entre as células da semente, caso esteja em quantidade maior do que a ideal, aloja-se muito próximo à superfície, facilitando e, portanto, aumentando o processo respiratório. O branqueamento do grão é o equivalente ao branqueamento pelo qual pessoas que falecem passam também. Este é outro ponto que aponta a estreita similaridade entre o café e os humanos.

A armazenagem tem missão muito relevante: preservar os atributos que vão apaixonar as pessoas por esse lote de café. Todo o cuidado é importante para que essa condição seja plenamente satisfeita. Umidade relativa do ar no ponto certo, temperatura ambiente idealmente para baixo dos 25ºC.

Ensei Neto no Porto de Moka e Mar Vermelho, Iêmen

Todo estresse devido à temperatura alta é um problema, porque diminui a vida do grão de café. Sim, estressados vivem pouco e mal.

 

ESPÉCIES & VARIEDADES

Pela importância econômica, são utilizadas para fins industriais em larga escala sementes de duas espécies, que são a Coffea arabica e a Coffea canephora. A primeira espécie, Coffea arabica, tem o dobro de cromossomos em relação à segunda, canephora, cuja fecundação das flores é feita por polinização cruzada.

As principais variedades de Coffea arabica podem ser separadas em três grandes grupos: Primitivas, Clássicas e Modernas. Entre as PRIMITIVAS, se encontram a Typica, juntamente com a variedade Bourbon, originado da antiga ilha de Bourbon, hoje Reunião, no Leste da África, e o Caturra.

As variedades CLÁSSICAS são resultado de mutações genéticas naturais ou recombinações das PRIMITIVAS e tem como principais representantes no Brasil o Mundo Novo e Catuaí. Uma curiosidade: o Bourbon Amarelo é originado da combinação entre o Bourbon Vermelho e o resultado de mutação natural conhecida como o Amarelo de Botucatu, encontrado na região de Botucatu, SP. Portanto, o Bourbon Amarelo é variedade de origem brasileira.

As variedades MODERNAS foram obtidas a partir da combinação genética de variedades Primitivas e Clássicas com os chamados Híbridos Naturais como o Catimor, originado na Ilha do Timor, e o Sarchimor, de Villa Sarchi, e que são resultados de combinação entre arábicas e canephoras.

Entre as variedades mais conhecidas deste grupo estão o Obatã, o Icatu e o Catucaí, todas de alto desempenho produtivo. As plantas do Coffea canephora são originárias de terras de baixa altitude da África Oriental, principalmente. C

aracterizam-se pela sua rusticidade, daí a origem de seu nome de mercado, robusta, sua alta capacidade e estabilidade produtiva.

Tem porte arbustivo. Suas variedades mais conhecidas são a Robusta, produzida principalmente no Sudeste Asiático, Índia e Camarões, e a Conilon, cultivada no Brasil.

Sendo espécies diferentes, é bastante razoável esperar que a composição química de suas respectivas sementes apresentem diferenças notáveis.”

 

Carmen, Sebastião, Roque, Conceição e Fabrício, na Fazenda Giori

Todo alimento é uma história de vida

Com qual história você quer se alimentar?

A Fazenda Giori pertence à família Giori desde 1997, uma família de descendentes de italianos que chegaram ao Brasil em 1895, época em que o contato com o cultivo do café se deu pela primeira vez. Desde então as gerações da família se dedicaram ao plantio, cultivo e beneficiamento do café, ampliando a experiência cafeeira e transmitindo o amor pelo café de geração a geração.

O primeiro contato dos Giori com o café se deu com o Arábica, relação essa que durou longos anos, até que a paixão pelo Robusta e por seu potencial nascesse com a mudança de ares e de climas. Com a atual geração, o encanto com a cafeicultura aumentou na exata medida em que cresceu o desejo familiar de estabelecer uma relação saudável com a terra, nutrindo-a sem agredi-la, respeitando seus ciclos, suas fases e sua aptidão natural de gerar vida.

A união do cultivo do café com o desejo de converter a fazenda em um organismo agrícola vivo e pulsante resultou na adoção de uma agricultura orgânica, sustentável e curativa. Na busca por estabelecer um vínculo de convivência não agressiva entre o agricultor, a terra e o fruto gerado por ela, a família Giori descobriu a biodinâmica, um método criado em 1924 por Rudolf Steiner, fundador da Antroposofia.

A fazenda então seguiu seu caminho natural no desejo de mudar a relação do homem com a terra: pensou de forma inovadora, agiu de forma sustentável, tornou-se orgânica e percebeu que no curso dessa caminhada já estava trilhando os princípios da agricultura biodinâmica. O resultado foi a construção de um manejo altamente sustentável e harmonizado com

outras culturas, como a criação de ovinos, que hoje está totalmente consorciada ao café. Essa criação consorciada surgiu como um método facilitador da nutrição do café sem agressão à terra e aos seres vivos. Por outro lado, o pastejo na extensa área cafeeira, em pasto aberto, garante aos ovinos um estado natural de bem-estar, promovendo saúde para os animais e emprestando à carne sabor e características únicas.

 

Fazenda Giori, no interior do Espírito Santo, uma propriedade agrícola viva

Esse método de trabalho desenvolvido na Fazenda Giori, com reverência e respeito à terra, permite o cultivo e a colheita de um café de qualidade, rico em sabor, totalmente orgânico e biodinâmico, com métodos de produção seguros e plenamente rastreáveis. Toda a produção de café da Fazenda Giori é auditada e certificada pelo IBD.

Amor pelo café, de geração a geração

O amor deixado como herança pelos Giori que chegaram ao Brasil naturais da cidade de Nozza, província de Brescia, norte da Itália, e multiplicado por Severino Giori e Delvira Maria D’Agostini Giori é o principal valor que rege o atual trabalho da caçula Conceição Giori ao lado de seu esposo Fabricio Campos e seus irmãos Sebastião, Domingos Roque, Carmen, Marta e Mônica, a frente da produção do café biodinâmico na fazenda que está localizada na zona rural de Barra do Mutum em Cachoeira do Itapemirim no Espírito Santo.

Brescia, norte da Itália

Conceição conversou com o nosso Editorial Onews e num relato emocionante, em primeira pessoa ela conta como foi sua infância e as escolhas que a direcionaram para a produção biodinâmica, tendo passado pela produção convencional antes.

Acompanhe a seguir.

“Costurando pedaços você constrói pontes.

Esse é um dos melhores presentes que o universo nos propiciou, a possibilidade e a oportunidade de vivermos uma irmandade para além do sangue, é uma irmandade de alma, isso é o que é mais bonito entre nós.

Falar da infância é muito difícil. Se eu conseguir resumir aqui, pelo menos uma parte da verdade… será muito bom. Quando cheguei a este mundo num lugar chamado Vargem Fria, no município de Castelo, já tinha dez irmãos que me aguardavam.

Meus pais não esperavam o décimo primeiro filho, meu nome, inclusive, Conceição Aparecida Giori veio porque minha mãe havia feito uma promessa pois as duas últimas experiências dela na gravidez dos meus irmãos anteriores a mim, foram de alto risco. Meus pais moravam num local um pouco distante de centros urbanos.

Ela tinha muita fé em Nossa Senhora Aparecida e disse que se nascesse uma menina seria Conceição Aparecida. Eu já vim para este mundo carregando um tanto quanto de fé muito importante. Foi o ponto de fé que meu pai, minha mãe e meus irmãos depositaram em minha existência. Acho que só por isso eu nasci num berço de muito amor, no meu ouro físico, é o que chamo de ouro alquímico. Nasci num berço de ouro alquímico.

Meus pais e meus irmãos são elementos alquímicos na minha existência e todo elemento alquímico existe para nos transmutar, nos transformar, nos mostrar nossa direção, nosso norte. Acredito que eles têm essa sensação, esse sentimento em relação a mim, tanto quanto tenho em relação a eles.

Como a minha existência e minha história de vida na minha família começam desta forma, acredito que a minha relação com a terra só é da forma como ela é porque creio muito no poder da cura, do acolhimento, da proteção. Eu vivi isso no centro de uma família que era eminentemente rural, uma família de agricultores.

Foi entre eles que eu aprendi a amar, a respeitar, a sonhar, a burilar sonhos, a encontrar possibilidades.

Toda família italiana é rígida e conservadora por si, a minha não foi e não é exceção. Tanto meu pai quanto minha mãe eram extremamente conservadores, inclusive na forma de expressar amor e de dar carinho, porque eles tinham uma noção de que o respeito aos limites era uma das formas mais importantes de você conseguir criar um filho com eficiência e que fosse um filho com envergadura de caráter que não se envergonhasse.

Eles tinham essa preocupação.

Dos meus irmãos tive todo o mimo de uma irmã mais nova, que era a bonequinha deles. Por isso digo que sou grata porque tive o melhor dos dois mundos. Minha mãe já era avó quando eu nasci, ela teve comigo a experiência de mãe e a experiência de avó ao mesmo tempo.

O que herdei deles foi a capacidade de amar respeitando os limites.

Minha mãe era um espírito muito forte, uma mulher com uma envergadura de caráter, um tanto de energia, de crença na vida, de disposição para enfrentar desafios e tornar todos esses desafios oportunidades de crescimento.

Essa era minha mãe!!

Uma mulher que enfrentou muitas dificuldades, inclusive a fome, mas cada dificuldade foi um passo no caminho da evolução e ela teve para ela mesma tudo o que nos ensinou a ter para nós. Ao mesmo tempo que era o ponto de chegada, era também o ponto de partida. Nós sabíamos exatamente para onde íamos porque minha mãe era uma grande bússola. Era bússola e era um farol.

Elas nos deu tudo isso.

Se eu toco numa planta e vejo que essa planta pode curar é porque aprendi isso com minha mãe. Nós aprendemos. Quando ela tinha muitas dores de cabeça, ela colocava folhas de café na cabeça para que essa dor desaparecesse. Folhas de café colhidas numa hora específica do dia, colocadas na têmpora amarradas com lencinho, quando as folhas secassem a dor de cabeça desaparecia.

Minha mãe tinha essa capacidade natural de enxergar tudo o que a terra nos disponibiliza, como forma de nos manter vivos e saudáveis. Meu pai era tão conservador que tinha um pouco de medo da mudança, de perder a estabilidade.

Minha mãe ia além do medo e nos ensinou isso. Os dois conjuntamente conseguiram criar uma família bem equilibrada porque cada um conseguiu dar de si aquilo que tinha, cada um conseguiu aprender a conviver com suas limitações, não defeitos, mas limitações, aspectos próprios.

 

O sorriso contagiante e leve da matriarca Delvira Maria D’Agostini Giori e seu esposo, Senhor Severino Giori admirando a Fazenda da família admirando a vista da fazenda e dos cafeeiros

 

Nós temos os nossos ancestrais dentro de nós e temos que conviver com isso todos os dias, tantas personalidades dentro de você.

Ter nascido numa família numerosa foi um grande benefício.

Ter conseguido aprender com todos essas personalidades que já existiam em mim e que existiam em cada um dos meus irmãos e nos meus pais, foi maravilhoso.

Somente por isso nós conseguimos ser agricultores biodinâmicos, porque aprendemos a conviver, a interpretar, a ler, a lidar e a criar conjuntamente com “trocentas” personalidades diferentes, e extrair delas um ponto em comum. Quando eu era criança, praticamente não entrava nada em casa, nenhum alimento.

Até porque as possibilidades financeiras eram muito limitadas, como meus pais tinham uma grande força de trabalho e os filhos também, nós produzimos muito do que nós consumíamos. Não produzimos o trigo, mas tomate e o jiló eram da nossa pequena propriedade.

“Se eu descrever minha mãe como um farol, estou sendo certa porque ela sempre foi um farol.

Ela foi e continua sendo uma luz potentíssima que sempre diz onde tem terra firme.” Conceição Giori

 

Nós ainda estamos muito aparelhados para o de fora. Ainda não conseguimos olhar para dentro. Quando conseguirmos como humanidade entender e aceitar que cada um de nós é o nosso próprio lugar no mundo, não precisaremos de nada do que vem de fora.

Nós poderíamos nos abrir para o que vem de fora para um compartilhamento, não para uma escravização como dependência.

Algo que ninguém sabe exceto minha própria família: eu era muito pequenina na roça e o que eu mais amava ali eram a colheita, plantio, capina, roçada. Meu pai na verdade, naquela época, nem capinava, ele fazia o que se chama de saia do café.

Ele deixava o mato nas entrelinhas e fazia somente aquela pequena capina em volta, onde colocava nutrientes para o canteiro. Tínhamos uma criação de porcos. Eu via meus irmãos com a enxada e também queria aquela enxada.

Um dia me deixaram ir para a roça com a enxadinha, eu levei uma queimada tão grande… Minha irmã Marta costurava as minhas roupas, tinha uma blusinha que se chamava doce de coco, tipo um topzinho.

Fui com ele para a roça. Meus irmãos avisaram que o sol ia me queimar, diziam “você não consegue pegar a enxada…” Meu Deus!!! Levei uma queimada do sol… deveria ter uns 6 aninhos, eu queria muito fazer o que via meus irmãos fazendo.

Eles gostavam de me ter por perto, eu ia com eles, via aquele café caindo na lona.

A nossa propriedade era um local com bastante declives, era bem difícil ficar com a peneira em algumas áreas, me lembro do cheiro do café, me lembro dos meus irmãos sorrindo, cantando, tudo era com alegria, me lembro do momento em que eles paravam para tomar o café, essas foram as minhas experiências porque eu estava ali com eles.

Sempre tivemos a cafeicultura como fonte de renda, se fazia algumas pequenas comercializações de feijão e milho que os meus pais plantavam também. A maioria de milho, feijão, leguminosas e verduras eram para consumo da nossa própria família, que, apesar de termos sido pobres, tivemos fartura de alimentos produzidos por nós.

Quando falo que fomos muito pobres, faço uma correção, se considerarmos dinheiro, sim, mas de amor nós sempre fomos e somos muito ricos.

Houve uma fase da vida em que pude notar uma mudança de comportamento na forma de agricultura que praticávamos.

Começamos a ficar mais industrializados. Começamos a receber visitas dos agrônomos que vendiam produtos químicos, porque todo mundo estava fazendo aquilo para se tornar mais produtivo.

O café deveria ser podado de forma diferente, segundo estes agrônomos, o que antes era mais primitivo, natural, passou a ser mais automatizado por fórmulas prontas, você tinha o seu NPK que a indústria coloca na lavoura, tinha que capinar tudo, roçar já não era o ideal, o mato para eles não era bom…

Pude observar naquele momento durante meus quinze anos, uma mudança grande do que era a cafeicultura no modo como meus pais faziam e aprendemos com eles, para o modo como passou a ser feito por todos.

As pessoas passaram a acreditar que para ser mais produtivo tínhamos que passar a ter outras medidas e adotar outras práticas de manejo. Fizemos isso, todos os produtores fizeram. Minha mãe sempre freou muito esse processo, como por exemplo: adubo sim, veneno não.

Em 2011 eu comecei, já em nossa nova fazenda atual, a incentivar meus irmãos a que voltássemos à nossa forma primitiva de trabalhar.

Eles disseram que iríamos perder produtividade. Eu insisti dizendo que seria um novo momento.

E tudo o que é novo precisa de um tempo de adaptação. Me lembro que minha mãe ficou muito feliz porque era o que ela queria. O lobby das indústrias e agrônomos ligados à indústria é e sempre foi agressivo. Nós tivemos um período de hiato onde nos distanciamos da agricultura que aprendemos. Acredito que isso foi necessário, foi importante porque criamos um período de testemunha para saber que este caminho não é válido.

Começamos a estudar biodinâmica

Quando li o livro dos fundamentos da agricultura biodinâmica de Rudolf Steiner, conclui que nós já éramos biodinâmicos lá atrás e não sabíamos, me acendeu ainda mais a vontade de realmente trilhar aquele caminho como princípio de agricultura porque tinha muita semelhança com o que meus pais aprenderam, como o que meus nonos trouxeram da Itália.

Quando eles chegaram da Itália, vieram buscando dignidade. Buscando um espaço para desenvolverem a vida deles dignamente e não se pode ter dignidade em nada do que é falso.

Sebastião, meu irmão, começou então a se encantar com a biodinâmica, depois o Roque, a Carmen, minha irmã Marta, a Mônica, os meus pais e quando fizemos a primeira certificação meu pai já havia partido.

Ele não experienciou a fase da certificação mas experienciou a fase de tudo o que a gente fazia. Quando resolvemos, fizemos de uma vez. Nós tínhamos na época 34 hectares de café, numa propriedade maior do que o espaço de cultivo do café. Nós paramos de uma única vez a produzir o café convencional. De 2012 para 2013 introduzimos as ovelhas. Hoje temos as vacas e as galinhas, uma propriedade bem viva.

O ponto de encontro com a biodinâmica é justamente você não pretender o resultado, é você simplesmente aceitar a caminhada. Por isso que na biodinâmica nada, nunca, está pronto, tudo está em constante transformação. Tudo sempre está em construção.

É extremamente desafiador, você precisa aceitar ainda mais trabalho, aceitar como se estivesse trabalhando com um bebê, e você não tira férias de um bebê nunca.

É um compromisso de fato. Se esse processo não tem como te fazer feliz você não tem como estar na biodinâmica, aliás, em absolutamente nada na sua vida.

 

“Depois que meu pai partiu, comecei a gestar dentro de mim um desejo muito forte de que o nome da família enquanto história de vida pudesse ser reconhecido também como uma maneira de honrar todos os nossos ancestrais.”

Os ovinos

Introduzir os ovinos foi uma ideia de meu irmão Sebastião.

Eu disse a ele que foi uma coisa linda o que ele fez, porque na verdade quem teria descoberto o café teria sido um pastor que percebeu que os animais começavam a se interessar por determinada planta e ele então observava o comportamento deles, até que pegou os frutos daquela planta e descobriu o café como bebida. Eu disse a ele que iríamos reviver uma lenda aqui na fazenda.

Cada dia é novo para nós, porque você tem de um lado a planta do café, que eu chamo de planta da esperança, que você tem que aprender a ouvir, a interpretar e a cuidar, de outro você tem as ovelhas que são animais extremamente sensíveis que demandam muita atenção, presença e cuidado. De uma certa maneira são as ovelhas que estão nos ensinando a desenvolver a nossa presença dia a dia, a estar com foco, a estar ali onde você está.

Reparamos que a vida puxa vida. As vacas leiteiras que antes eram somente para atender a propriedade, hoje atendem a comunidade que vai até a fazenda buscar seu leite orgânico. Nós não nos beneficiamos disso financeiramente, a comunidade está sendo beneficiada.

É uma comunidade do entorno descobrindo que há um lugar onde eles podem buscar alimento limpo. Isso é muito bonito.

Meu irmão Roque é o que mais fica com as ovelhas e nós brincamos que ele é uma extensão delas. Acabamos nos tornando uma extensão do que fazemos.

 

Quando aprendermos a usufruir da diversidade, não da diferença, seremos extremamente ricos de alma e de possibilidades.

Fazer com que as pessoas tenham esse sentimento em relação ao café, ao que há por trás do café, pois ele não chega ali na xícara de alguém do nada.

Todo alimento biodinâmico e orgânico carregam em si uma carga de identidade muito potente, eles têm a possibilidade e características de pertencimento.

Existe um ponto de encontro onde todos sabem de que lugar veio. Eles pertencem. Há um ponto em comum, a produção do alimento biodinâmico e orgânico nos permite criar identidade.

Nós trabalhamos com aptidões e essas aptidões podem se alterar com o tempo de manejo porque tudo muda, e a terra também muda. Por isso que num alimento orgânico ou biodinâmico, você nunca terá bebido o mesmo leite ou tomado o mesmo café ou comido o mesmo tomate, ele sempre está em transformação.

Esse é o grande benefício para alguém que se alimenta de um produto orgânico ou biodinâmico, saber que não haverá padronização no sentido de que você sempre vai estar se alimentando de algo vivo com vibrações diferentes dependendo da época da colheita e do tempo de plantio, e do que acontecer naquela propriedade.

Por isso temos muito cuidado na nossa fazenda para que tudo o que aconteça seja para o bem, porque tudo o que sucede fica impregnado como energia e informação. Todo trabalho sério de agricultura orgânica e biodinâmica é um trabalho árduo. Ainda é árduo, porque além de produzir e de encontrar formas sustentáveis de produzir, ele precisa convencer as pessoas.”

“Buscamos nos tornar pontes, e cada pacotinho de café que vendemos é uma ponte que nos liga a alguém.

A agricultura é uma grande ponte que liga todo mundo.”

“Fomos lapidados para ficar no campo e nós sempre gostamos da terra.

Na rua você não sente esse cheiro.

Nós entendemos a terra como nossa mãe e precisamos retornar para ela o que ela nos dá, que é uma boa alimentação. Isso são trocas de favores, precisamos protegê-la para ela nos proteger com saúde.

Se você observar a produção de uma terra natural e de uma não natural, é satisfatório ver o que a terra nos entrega quando você não usa adubos químicos de fora. Se você tratar a terra com a homeopatia deixando-a como nos deixaram há milhares de anos atrás você ficará satisfeito com o resultado.

Para nós isso é normal, para quem está de fora, apenas no convencional não é normal tratar a terra dessa forma.” Sebastião Giori

“Eu sempre mexi com café e com criação, minha rotina sempre foi essa, adicionando os carneiros, as ovelhas, que exigem uma atenção maior.

É como cuidar de uma criança prevenindo com a homeopatia o que pode vir de ruim.

O próprio animal demonstra suas necessidades para quem mexe com ele.

Quem conhece sabe o que ele precisa, se tem um problema ou não.

Como família sempre ficamos juntos. Meus pais foram pessoas maravilhosas, perder meu pai primeiro foi uma barra muito grande mas como tínhamos a mãe, nos agarramos nela.

Ela sempre lutou por nós. Ela dizia para apenas trabalharmos que tudo iria dar certo.

Ela tinha uma força muito grande. Eles levavam a gente para frente.

Foram quase Deus para todos nós.” Domingos Roque Giori

Acima as novas embalagens que trazem a forma adequada de preparar o café. Abaixo a propriedade rural

Conversamos ainda com Fabricio Campos, que ao lado da esposa vem trabalhando para expandir a distribuição do café Giori nos principais mercados do Brasil.

Acompanhe, a seguir, a entrevista exclusiva.

Onews: Qual é a maior dificuldade que o café enfrenta no mercado brasileiro?

Fabricio: Difícil encontrar o que seja o desafio maior. Resolvemos disponibilizar nosso café para o consumidor final num contexto bastante complexo.

As crises dos últimos anos intimidaram muitos consumidores, ao mesmo tempo em que os produtores passaram a enfrentar problemas sérios com todo o processo que vai da colheita à xícara: isso envolve desde o frete de insumos e de maquinário até a embalagem do café que vai para a casa dos clientes.

Mas se eu tivesse que escolher o desafio principal digo que ele está na pouca compreensão dos diferenciais dos produtos orgânicos e biodinâmicos.

Ainda que o interesse por alimentos orgânicos só venha crescendo, o entendimento e as exigências do consumidor com relação a alimentos verdadeiramente saudáveis tem muito espaço para crescer.

Um exemplo disso é a baixa compreensão geral sobre o que significa levar para casa um produto certificado em comparação com outro produto similar que apenas afirma ser mais saudável porque não utiliza agrotóxicos.

A garantia dada por uma certificação ainda tem passado desapercebida por muita gente. Um outro desafio, que também é um problema de informação, diz respeito a alguma resistência ainda existente com os canephoras. E esse é um problema estranho e que não tem similar em outros setores da indústria de alimentos: muitos consumidores que estão começando a descobrir os cafés especiais e muitos que estão adotando o consumo de alimentação orgânica acabam não se preocupando se o café é um arábica ou um canéfora e a distinção acaba sendo uma questão de estilo.

Entretanto, há um restinho de discriminação (que está desaparecendo) baseada na ideia de que os canephoras não são cultivados para serem consumidos isoladamente. Um pouco dessa desinformação aparece de maneira subentendida em algumas práticas da indústria como por exemplo a adoção do termo “100% arábica” nas embalagens de café, como se a blendagem entre arábicas e robustas fosse um problema em si mesmo.

Onews: De que forma você espera encontrar o café Giori no Brasil daqui a 10 anos?

Fabricio: A ideia é a de termos variedades bem consolidadas num futuro próximo e não só em cafés, mas também com outros alimentos biodinâmicos. Faço esse exercício também do ponto de vista do consumidor e do que ele vai encontrar daqui a dez anos. Nesse aspecto, quero que ele tenha à sua disposição uma marca em que confie, que goste de ter em casa sempre, que seja uma referência de produção saudável e sustentável e que seja parte de uma engrenagem de um movimento que gera saúde para os que consomem e para o planeta.

Onews: Como você resume para nós o trabalho da Fazenda Giori e o compromisso com a biodinâmica?

Fabricio: A Fazenda tem um engajamento verdadeiro com os princípios da biodinâmica, o que vai muito além de colocar um selo na embalagem: trata-se de um compromisso com o planeta e com os seres que o habitam. Ao mesmo tempo em que a agricultura produz alimento, ela também faz parte de um esforço contínuo para harmonizar o solo, a natureza e as pessoas. Se a agricultura orgânica e sustentável representa um passo adiante da agricultura meramente exploratória, a biodinâmica ensina que a intervenção humana na natureza pode ter por significado o aprimoramento da própria natureza.

Onews: Qual é a sua mensagem para o consumidor de cafés especiais no Brasil?

Fabricio:O consumidor de cafés especiais deve ter em mente duas coisas. Primeiro: há um carnaval de notas e pontos dos quais ele deve fugir ou, no mínimo, olhar com mais reservas e, segundo: o café especial deve incorporar (e se isso hoje não é 100% realidade, o caminho é sem volta) critérios de produção que respeitem o meio ambiente e a sanidade das plantas e do consumidor. Essa questão de pontos e notas virou um carnaval de números carimbando embalagens para todos os lados e que só confunde o consumidor, muitas vezes convencido de que os tais 90 pontos colocados na embalagem dizem mais do que os 80 pontos de outra, quando o produto final pode ser um desastre (para o paladar e às vezes para a própria saúde) com ambas as pontuações. Além disso, não faz muito sentido apreciar um café de sensoriais satisfatórios quando seu cultivo pode estar associado a níveis insuportáveis de agrotóxicos que, a longo prazo, podem significar riscos à saúde de quem bebe.

O casal de executivos da Fazenda, Conceição Giori e Fabrício Campos

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