“A diferença entre perdedores e ganhadores estará em quem estiver do lado da sustentabilidade – estes serão os ganhadores.”
Larry Fink, CEO da BlackRock
O que o leite que o seu filho bebe tem a ver com isso e com a saúde do solo?
Por Kátia Bagnarelli, exclusivo para Jornal On, Onews, em 26/08/2021
No encontro virtual realizado pela Associação Brasileira dos Produtores de Leite, nesta quarta feira 26, foi abordada a atual produção de leite orgânico no Brasil e o seu potencial de crescimento.
Na abertura do encontro, o presidente da Embrapa Brasil, Dr. Celso Moretti, parabenizou os produtores de leite orgânico do país ressaltando que a cadeia produtiva do leite é extremamente importante, relevante e estratégica para o agro brasileiro, com produção de leite em 99% dos municípios, com mais de 1 milhão de propriedades produtoras de leite, gerando emprego, renda e desenvolvimento no país.
Moretti reafirma que o papel da Embrapa Brasil é gerar soluções competitivas e sustentáveis para o agro brasileiro e há mais de uma década vem trabalhando com o desenvolvimento de tecnologias voltadas à produção orgânica.
“O mundo está de olho no Brasil, nos pressionando para que os mercados e economias descarbonizem as atividades produtivas, da indústria de automóveis à pecuária leiteira, além da carne carbono neutro. O capital de investimento irá para aquelas cadeias produtivas que investirem em descarbonização”, conclui o presidente citando Larry Fink, CEO da BlackRock, um dos maiores gestores de ativos do mundo.
Geraldo Borges, presidente da Abraleite relata as visitas aos produtores orgânicos em parceria com a Embrapa, enfatizando que estes roteiros tem o objetivo de, em conjunto, promover soluções para os problemas atuais, onde a agregação de valor é fator importante para o crescimento do setor.
Claudinei Saldanha Junior, produtor de leite orgânico e coordenador da Comissão de leite e derivados orgânicos da Abraleite explica que o leite orgânico precisa ser certificado e que os caminhos para isso são uma certificadora ou a entrada numa Associação de produtores com Certificação Participativa, onde um produtor fiscaliza o outro. Em ambos os casos a auditoria final é concebida pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
O marco zero para que uma pecuária leiteira se transforme em orgânica se dá na interrupção de todos os insumos químicos utilizados, sejam eles adubações químicas, pesticidas, inseticidas, entre outros. O ciclo orgânico se inicia na parte agrícola.
Após essa etapa haverá a conversão animal totalizando dezoito meses de adequação para que se conquiste a certificação orgânica.
“Na conversão animal deixa-se de usar os carrapaticidas, inseticidas, passando a tratar o animal homeopaticamente, com muito sucesso comprovadamente.
Ao final dos 18 meses após auditoria anterior e posterior ao período de conversão, o produtor passa a ter o seu leite certificado orgânico”, confirma Saldanha.
Fernanda Machado, pesquisadora da Embrapa Gado de Leite, que comanda o projeto Observatório do Leite Orgânico Nacional nos conta que o leite orgânico é um produto oriundo de um sistema manejado de acordo com os princípios da agricultura orgânica.
“Produzir leite orgânico não se trata apenas da substituição de insumos proibidos por insumos permitidos pela legislação. Sistemas orgânicos de produção devem ser geridos como organismos agrícolas, como bem coloca a legislação.
Os objetivos e os princípios apontados no regulamento técnico atualizado devem ser muito bem compreendidos pelos produtores para nortear o manejo e a tomada de decisões.
A produção orgânica é uma tendência em todo o mundo que vai justamente ao encontro das mudanças nas atitudes da geração que está assumindo o mercado consumidor, uma geração que busca aproximação e fidelização com empresas comprometidas com propósitos e esse diferencial da produção orgânica de restrição ao uso de antibióticos, hormônios, a busca pelo incremento da biodiversidade, o bem estar animal e a redução dos impactos ambientais, são o diferencial como tendência.
São nichos de mercado que caminham para se tornarem fundamentais para a viabilidade e sustentabilidade do sistemas de produção do futuro.
É um caminho que precisamos continuar construindo e fomentando. A Embrapa, no acompanhamento das megas tendências da agricultura, também busca soluções para os sistemas orgânicos de produção e um reflexo disso é a recente aprovação de três projetos com foco em produção orgânica:
O projeto Sistema de Produção de Milho Orgânico, liderado pela Embrapa Milho Sorgo;
O projeto de Desenvolvimento de Solução Digital para os registros da produção orgânica, liderado pela Embrapa territorial;
E o Observatório do Leite Orgânico Nacional, que foi construído em conjunto pela Embrapa Gado de Leite, Embrapa Pecuária Sudeste, Embrapa Cerrados, com a colaboração de outras entidades como EMATER, EPAMIG, IF Sul de Minas e IBO.
Desde a fase de elaboração da proposta nós tivemos um grande apoio da Comissão de Leite e Derivados Orgânicos da Abraleite, em parceria muito consolidada e ativa.
Este é um projeto construído em rede, com início em março deste ano de 2021, que tem o objetivo de gerar e coletar dados de caracterização desses sistemas produtivos, dos fornecedores de insumos, dos canais de distribuição e do mercado consumidor e disponibilizar essas informações sistematizadas numa plataforma do Observatório do Leite Orgânico Nacional, para acesso aberto ao setor produtivo e transparência para a sociedade”, relata Fernanda.
Todos os participantes enfatizaram o potencial de crescimento da produção orgânica do leite, desde que com foco e inteligência estratégica para dar apoio a esse crescimento que deve ser estruturado, conhecendo os desafios e dificuldades dos produtores para direcionar melhor as demandas de pesquisa a fim de co geração de soluções e novas tecnologias para o setor.
No mês de agosto o cadastro nacional revelou mais de 25 mil produtores orgânicos certificados, dos quais 144 produzem leite orgânico, contabilizando 87 unidades de produção.
Deste total, quase 50% estão no estado de São Paulo, um número menor no Paraná, Rio de Janeiro e Minas Gerais. 62% das unidades tem certificação por auditoria pelas certificadoras, 25% por sistema participativo por avaliação de conformidade e 13% por organização de controle social com venda direta ao consumidor sem certificação.
Com relação a atividade, 50 propriedades produzem exclusivamente leite orgânico sendo este perfil predominante no estado de São Paulo, 37 unidades produzem leite e outros produtos como frutas, verduras e ovos.
Em relação à espécie, predomina produção de leite de vaca com registro de duas unidades de produção de leite de búfala e uma unidade de produção de leite de cabra.
Os gráficos do projeto ainda demonstram unidades de processamento de leite orgânico e distribuição por estados, porcentagens dos tipos de certificação e o número de unidades que processam exclusivamente laticínios orgânicos e que processam laticínios ou outros produtos. Ainda revelam o número de unidades de processamento de produtos que utilizam leite orgânico como ingrediente, nos casos de chocolate, sorvete, pães e bolos.
A Fazenda Malunga no Distrito Federal é um exemplo de produção leiteira orgânica bem sucedida. Ela tem aproximadamente 150 hectares de produção orgânica, entre hortaliças, leite e laticínios que processam o leite.
Detém uma rede de lojas próprias, onde seis são varejo e uma atacado. Abastece redes de supermercados, feiras e bancas para o consumidor final.
Joe Valle, produtor da Fazenda Malunga explica todo o processo produtivo e comercialização em 30 anos de história.
“Quando começamos vendemos leite sem certificação pois na época não havia uma certificação para o leite orgânico. Iniciamos com a participativa. Vendíamos no isopor, no saquinho, na garrafa de 2 litros, vendíamos leite cru e leite pasteurizado.
Hoje tenho um ticket médio de leite de R$6,80, coloco este número em todos os produtos que fabrico. Pago para minha produção própria R$2,50 a nível de curral.
O laticínio da Malunga paga para o leite da Malunga este valor de dois reais e cinquenta centavos, essa é a minha composição de preços.
Temos leite Malunga no mercado sendo vendido de R$9.00 a R$14,00. Essa é a realidade.
Lógico que neste sentido, onde vendemos diretamente, temos um processo de concorrência, de conquistar mercado e um processo de custo comercial que precisa ser escalado.
Estamos com muitas novilhas para parir e queremos chegar a 2.500 litros de leite para que o projeto possa se estabilizar dentro da nova ótica de profissionalismo na produção.
Em relação à comercialização, em minha loja, por exemplo, vendo o leite A2A2 que tem preço de venda praticamente igual ao orgânico, tem uma saída muito boa, as pessoas compram o leite A2A2 porque os médicos receitam esse tipo de leite hoje em dia. Há uma certificação específica para este leite, estamos caminhando para certificar todo o nosso leite Malunga como A2A2, todos os nossos animais já estão testados para isso, e temos também espaço para o leite A2A2 praticamente ao mesmo preço do leite orgânico”, conta Joe.
O leite A2A2 tem a proteína Beta-Caseína A2. Este leite é comercializado atualmente como uma alternativa mais fácil de digerir para pessoas que sofrem com problemas gastrointestinais ao consumir o leite comum mais conhecido como A1.
Ele continua nos explicando, “essa é uma lógica importante de mercado, apesar de Brasília ser um mercado com renda per capita alta, as cidades satélites refletem o mercado convencional tradicional para todos os outros estados.
Toda vez que tenho um preço alto ou muito mais alto do que o valor do leite convencional é claro que tenho um mercado menor onde não consigo escalar.
Vejo que ao caminhar da tecnologia, do conhecimento, possamos ter uma escalabilidade dentro de uma regra clara.
Já existe uma consciência de parte da população que quer efetivamente ir em busca de um leite orgânico.
Para a população o sinônimo de orgânico é leite sem agrotóxicos, as pessoas querem a comida mais saudável e as pesquisas mostram que elas estão dispostas a pagar por este produto na gôndola do supermercado.
Quanto maior for a diferença para o convencional menor a escala que permitirá essa venda, quanto menor a diferença maior a escala chegando ao ponto de termos condições de produzir o leite orgânico no mesmo preço do convencional, quando isso acontecer venderemos o orgânico antes do convencional. A nossa barreira de hoje é o preço.
Pessoas e vacas felizes trabalhando juntas movimentam todo o negócio. Precisamos do crescimento de mercado para ter maior escala e preços menores.
Outro aspecto relevante atualmente são as margens que os vendedores colocam no produto orgânico.
Elas são maiores do que as colocadas no produto convencional porque caracterizam os orgânicos como produtos de nicho.
Nós não podemos trabalhar neste sentido a partir do avanço da tecnologia.
Outra coisa importante que percebemos é que eu, como produtor, tenho que fazer tudo, processar o leite, levá-lo ao mercado e arrumá-lo na gôndola.
A cadeia portanto, não está completa, precisamos completá-la.
É também muito importante que tenhamos laticínios processando leite orgânico e colocando este leite no mercado, como a Nestle tem feito no Brasil ao lado de seus produtores parceiros.
Essa iniciativa é extremamente importante porque se isso não acontecer teremos a dificuldade de especializar pessoas na comercialização que faça a produção e todas as outras etapas.
Nós fazemos isso hoje porque nascemos fazendo, mas não gostaríamos de continuar fazendo tudo.
O novo normal já é sustentável e orgânico.”
Luis Fernando Laranja, produtor da Agropastoril Guaraci relata também que o momento é de conscientizar o consumidor e a cadeia produtiva de que produzir leite orgânico não é somente produzir saúde para o ser humano.
“Nós produzimos leite orgânico há quatro anos em parceria com a Fazenda da Toca, recentemente lançamos nossa marca de produtos com um nome provocativo: “NoCarbon”.
O nosso nome é proposital pois destacamos a questão climática, acreditamos que é um elemento relevante que vai pautar os modelos de produção daqui pra frente, deixando de ser uma questão de opção e sim uma necessidade.
A questão climática será um drama cada vez maior daqui para frente e dentro deste grupo seleto de produtores de leite orgânicos temos a agenda do clima como destaque.
De uma forma geral os consumidores identificam no leite orgânico um leite sem agrotóxico, um leite sem resíduos, essa é uma perspectiva verdadeira, entretanto destaco que precisamos também insistir ou sustentar de forma sistemática que a produção orgânica tem um efeito relevante sobre o uso da terra, não é só um produto que é bom para quem bebe.
O slogan que criamos para nossa marca entrega esse norte: este é um leite bom para você e para o planeta.
O leite orgânico é pautado por uma série de normas que se aplicam para a criação animal e para o uso do solo.
Os produtores orgânicos não só fornecem um produto de melhor qualidade para o indivíduo mas também produzem um produto que deixa um resultado positivo para o planeta.
Insistimos que o consumidor que escolhe o nosso produto não só está fazendo um bem para si mas também para o planeta.
Fim da contaminação dos recursos hídricos, contaminação do solo além de uma série de comprometimentos da biodiversidade, passam de forma efetiva pelo conceito de produção de leite orgânico.
Estamos deixando um legado relevante para a terra ao produzir orgânicos.
Temos inúmeros fatores limitantes atualmente como a questão dos custos, das embalagens, a dificuldade de conseguirmos uma embalagem alternativa ao plástico e de todas as dificuldades que encontramos muitas vezes no relacionamento nem sempre tão alinhado com algumas cadeias de varejo que fazem com que o preço lá na ponta para o consumidor seja distorcido e prejudique de uma forma geral os produtos orgânicos, penalizando toda a cadeia como produto de nicho, com margem de contribuição maior para alguns”, conclui Laranja.
Outro depoimento que revela os caminhos da expansão na produção leiteira orgânica vem do dia a dia do produtor Ricardo Schiavinato na Fazenda Nata da Serra Orgânicos. Ele explica que a produção de leite orgânico tem que ser eficiente.
“Tentar fazer com que todos os fatores produtivos sejam controlados para que tenham sucesso. Costumo fazer uma provocação sobre a produção orgânica, produzo também tomate orgânico há 25 anos. O que é mais difícil de se produzir, leite orgânico ou tomate orgânico?
A resposta correta é que, tecnicamente, fazer tomate orgânico é muito difícil porque ficamos vulneráveis ao evento climático sobre a produção ou ao aparecimento de uma praga que coloca em risco toda aquela colheita.
Em relação a produção do leite, não acontecerá um evento climático que fará com que você perca 100% do seu rebanho, mas para produzir leite orgânico você tem que ter uma capacidade gerencial muito grande com entendimento de todos os fatores envolvidos na produção deste leite.
Desde a alimentação dos animais, seu bem estar, a questão da reprodução do rebanho – que só será boa se eles viverem bem, comerem bem, serem bem manejados.
Quando começamos a entender que o multifatorial é fundamental e trabalhoso, progredimos.
Quando procurei a Embrapa em 2006, meus índices zootécnicos eram sofríveis, mas eu produzia muito bem meus legumes.
Queria entender o que eu estava fazendo de errado, não tinha a dimensão de compreender a questão multifatorial na produção do leite.
Junto com a Embrapa levamos conceitos do que eu já aplicava na plantação de tomate para a produção leiteira.
Eu tinha vacas dentro da propriedade que entregavam de 1.800 a 2.000 litros de leite por período de lactação, as mesmas vacas quando entraram no sistema de pastejo rotacionado comendo bem, sendo bem tratadas, passaram de 6 mil litros de leite.
O problema não era a genética do animal e sim o Ricardo. O sistema produtivo que eu estava adotando estava errado.
O que aconteceu conosco ao longo deste processo de 15 anos do projeto Balde Cheio da Embrapa, foi que saímos de uma produtividade em 2006 de 2 mil litros de leite por hectare ano para uma produtividade atual acima de 23 mil litros de leite por hectare ano.
Isso mostra que fazer o trabalho bem feito considerando todos os fatores traz resultado. Produzir leite orgânico é viável sim e é uma motivação para qualquer pessoa no mundo de hoje.”
André Novo, analista da Embrapa Pecuária Sudeste também participou do encontro transferindo o aprendizado na condução do projeto Balde Cheio dos orgânicos ao longo dos anos.
“As pessoas não conhecem o que é a produção do leite orgânico, nem o setor produtivo entende muito bem do que se trata, e os consumidores também não compreendem, ainda há uma visão bastante restrita.
Para exemplificar esse desconhecimento uso o nosso exemplo na Embrapa quando da primeira visita na Fazenda Nata da Serra do Ricardo.
Ficamos surpresos ao ver o trabalho que ele fazia com as frutas e legumes porque não era o estereótipo de produtor orgânico que eu tinha na cabeça.
Tinha um preconceito de imaginar que o produtor orgânico não usava tecnologia. Foi um erro enorme, na época, por falta de conhecimento de nossa parte.
Além disso, nos surpreendeu o trabalho forte de gestão da propriedade, ele já tinha a produção verticalizada e já tinha canais de distribuição.
A terceira surpresa era que ele, como produtor de leite, deixava muito a desejar, estava muito longe do ideal.
Nessa época firmamos uma parceria de muito sucesso justamente por causa disso. Nós fechamos o acordo para trocar conhecimento. O que ele tinha de conhecimento em produção orgânica em troca do que o projeto Balde Cheio trazia de informações para gestão do negócio leite e gestão da tecnologia.
A gestão da tecnologia está baseada em escolher a ferramenta certa para o momento certo.
A questão da viabilidade já está resolvida, se você for um bom produtor de leite e tiver um nível de gestão suficiente para atender aos critérios orgânicos e pensar a propriedade como um todo, com certeza será viável produzir.
Entretanto não se trabalha isoladamente. As parcerias são fundamentais. Precisamos tirar todo o conhecimento da prateleira e fazê-lo acontecer no campo, o que hoje em dia recebe o nome de inovação.
A pecuária de leite do futuro daqui a vinte ou trinta anos será a que se preocupa com o bem estar animal, atendendo a demanda da sociedade com inovação e será baseada em ciência, em conhecimento acumulado que é gerado pelas instituições de pesquisas aplicados e adaptados ao sistemas de produção”, finaliza Novo.
Outras informações e parcerias em Embrapa Brasil e em Abraleite