Em um tempo de extremada ignorância de nossa condição intrinsecamente associada ao meio ambiente em que vivemos, quando nossas mentes não conseguem traduzir para a linguagem do corpo o significado do sinais que recebemos todos os dias, quando nos tornamos tão fascinados e confusos com o mundo como ele é, perdemos a nós mesmos em nossa relação mais importante que é nossa relação com o símbolo de nós mesmos dentro do meio ambiente.

Não somos separados do meio em que vivemos, nosso comportamento é o comportamento da natureza ao nosso redor. Em uma visão mais realista de nós mesmos, somos parte do todo que nos rodeia. O que acontece na natureza, acontece em nós.

Quando falamos da experiência de nossa atividade como seres humanos, falamos da experiência da atividade da natureza que nos cerca.

Assim como a integralidade do Cosmos está numa árvore, numa nuvem que passa, na chuva que cai, no sol que ilumina, no solo, nos oceanos, assim também a integralidade do Cosmos está em nós.

A mística no mundo é a mística do homem imerso em seu território, mas um território sem fronteiras, um território onde todos nos tocamos a todos, onde ouvir nossa respiração é ouvir o cântico de um pássaro, o som do vento, o barulho das pedras que rolam, o som do impacto de nossos passos na terra, o som de uma folha seca que é esmagada por um animal numa trilha.

A mística no mundo é chorar o choro daquele que está chorando diante de nós.

A mística no mundo é ouvir o grito de desespero daqueles que perdem a dignidade de viver pela dor que oprime.

A mística no mundo é aceitar que o lugar do outro é o nosso lugar e que, numa visão ampla da vida, estamos todos envolvidos numa cortina de fumaça que nos impede de enxergar que o colapso do outro, é o nosso próprio colapso.

Não há como descrever a nós mesmos dissociados do meio ambiente, da natureza e de qualquer ser vivente neste planeta.

O caminho do desenvolvimento espiritual é o caminho do desenvolvimento da capacidade de atravessar o véu de Maia para aceitar que tudo que acontece somos nós.

O aquecimento global somos nós, a fome na África somos nós, crianças vivendo em lixões na Índia somos nós, moradores de rua nas ruas de São Paulo somos nós…

Durante muito tempo nos habituamos como sociedade a viver numa mundo de compartimentos e a aceitar os horrores da miséria, da fome, das guerras, da ambição, da corrupção que distorce nosso sentido como humanidade, como se fosse algo que, senão normal, ao menos a normalidade do momento. Um longo momento, diga-se.

Mas nos adaptarmos para viver nesse estado de crença e aceitar a quebra ilusória da unidade como normal, na verdade implica reconhecer nossa própria doença.

Jiddu Krishnamurti dizia que “não é sinal de saúde estar bem-adaptado a uma sociedade doente”.

Quando nos adaptamos a algo que nos desmonta em nossas próprias bases, negamos o mito da transformação do nosso ego (primeira pessoa do singular na língua grega – εγώ) no Eu que encontra o outro dentro de si, pois em verdade o “homem configura-se como aquela presença estranha com a qual devem as forças do egoísmo chegar a um acordo, presença por meio da qual o ego deve ser crucificado e ressuscitado e à cuja imagem a sociedade deve ser reformada.

O homem entendido, entretanto, não como ‘Eu’, mas sim como ‘Tu’: pois nenhum dos ideais e instituições temporais de qualquer tribo, raça, continente, classe social ou século, sejam quais forem, pode configurar-se como a medida da maravilhosa existência divina, inexaurível e multifária, que constitui, em todos nós, a vida”[1].

Somente fazendo a jornada mítica, podemos experienciar a via mística, quando o mito e a mística se fundem no reconhecimento da unidade de tudo que existe, de todo o universo contido num único átomo que, holograficamente, compõe todas as esferas da vida.

Percorrer esse caminho é a chave para a revelação do sentido dos sinais que recebemos.

Muitos de nós ainda sequer assumimos como verdade o impacto negativo de nossas ações no mundo.

E quando digo nós, me refiro a uma identidade coletiva que expressa um agir representativo de grande parte do grupo em que vivemos, ainda que esse grupo não possa ser considerado uma comunidade em sentido estrito.

Assim, ainda que alguns de nós não aceitem assumir o ônus pela alteração na estrutura do meio ambiente global, fato é que seja por desconhecimento, seja por ignorância, seja por inação, seja por mero sentimento de incapacidade ou de pequenez diante da dimensão dos eventos, todos estamos sendo afetados pelo desequilíbrio provocado pela mão humana em nosso planeta.

E se todos somos afetados, todos estamos recebendo sinais cada vez mais intensos das consequências de nossa desconexão com a terra.

Vivemos numa mesma casa e não damos atenção a ela. Não nos importamos se entupimos vários cômodos com lixo, se deixamos a comida mofar na despensa, se tomamos nosso banho de asseio com a água da descarga, não nos importamos que nossa cama esteja desarrumada e o armário praticamente caindo na nossa cabeça, porque na verdade queremos viver num outro pedaço da casa onde tudo é mais bonito, mais confortável, mais paradisíaco e, quando vendemos todos as nossas economias para chegar lá, não nos damos conta que só aumentamos a parte da casa da qual não gostamos e colocamos mais pessoas para morarem lá.

Essas pessoas possivelmente vão sentir um pouco mais de desconforto quando a casa começar a aquecer ou esfriar de repente, quando a comida, mesmo mofada, parar de chegar, quando a água do banho, ainda que de reuso, também escassear, mas o lado paradisíaco da casa, um cômodo cada vez menor, também vai ter de enfrentar os abalos na estrutura que os seus privilegiados moradores não vão poder reparar, a menos que comecem a olhar para o lado não tão confortável da casa e façam o caminho de retorno à origem para reconstruirem o conceito de bem-estar e segurança que o boom econômico nos fez acreditar ser sinônimo de “ quanto mais eu posso comprar”.

E cada vez compramos mais e pior, e mais por menos que se converte na pior escolha para nós mesmos e na melhor para um sistema que está condicionando seu sustento em nossa ignorância.

De nada adianta plantar árvores se não nos reconhecermos interdependentes com elas, não adianta utilizar biodegradáveis por um lado e escolhermos nosso alimento pelo menor preço, do outro.

Não adianta sermos agroecológicos e usarmos agrotóxicos no manejo das plantações agroflorestais.

Não adianta buscar um mundo sustentável e não pensar no sustento do agricultor.

De nada adianta, outra vez, buscar o menor preço nos alimentos e economizar para comprar a última geração de celulares, seja porque ignoramos a importância dos primeiros seja porque somos doutrinados a seguir no desconhecimento das consequências de nossas escolhas.

Não adianta a criação de fundos verdes se nós não recuperarmos nosso paladar para o verdadeiro alimento e nos tornarmos capazes de enxergar que muito do que nos alimentamos hoje tem gosto de plástico, tem sabor de plástico e até temos realmente plástico em nosso sangue[2]!!

Também não adianta separarmos o lixo em nossas casas e continuarmos comprando comida cheia de venenos, o veneno tradicional (o agrotóxico) e o veneno oculto (a indiferença).

Na tradição Hindu o Atman, esse mistério transcendente que chamamos também de Eu Superior, é composto por cinco revestimentos, e o primeiro deles é o alimento (Anamayakiosha)[3]. O alimento que compõe e sustenta o corpo humano.

Se levarmos em consideração a sacralidade dos alimentos, mudaremos nossas prioridades e passaremos a entender que somente seremos capazes de atingir o equilíbrio sustentável, inclusive para vivermos os outros quatro revestimentos (respiração, mental, sabedoria e beatitude) com saúde interior, quando atingirmos o equilíbrio alimentar.

E o primeiro passo para isso é entender que somente quando o alimento produzido está em equilíbrio com a terra ele é revestido de sustentabilidade, somente quando o alimento produzido dignifica o agricultor ele é revestido de valor, somente quando o alimento produzido é valorizado por nós ele é revestido de coerência.

É preciso que cada um de nós ouça com atenção, enxergue com afeto e seja capaz de assumir uma posição ativa nas transformações positivas que desejamos ver ocorrer no mundo.

Não é a sociedade que deve agir, é o indivíduo que deve agir, é o indivíduo que deve assumir sua função e aceitar vestir a coragem de agir a despeito do medo, de ver a despeito do horror, de ouvir a despeito do silêncio, de sentir a despeito da indiferença da inação humana e então ser capaz de apostar no herói criativo que existe dentro de cada um de nós, uma vez que “não é a sociedade que deve orientar e salvar o herói criativo, deve ocorrer precisamente o contrário. Dessa maneira, todos compartilhamos da suprema provação – todos carregamos a cruz do redentor -, não nos momentos brilhantes das grandes vitórias da tribo, mas nos silêncios do nosso próprio desespero”.

Os sinais são muitos, as escutas precisam ser seletivas para que eles sejam entendidos.

Escolha ouvir e deixe que o significado de sua vida guie você através do seu próprio mito, que é o mesmo meu, o mesmo nosso, o mesmo mito que explica a você e a mim!

 

Conceição Giori

CEO Fazenda Giori

Advogada Criminalista

[1] Campbell, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Ed Pensamento, 2007. P. 375.

[2]https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/04/25/pesquisa-encontra-pela-1a-vez-microparticulas-de-plastico-no-sangue-de-seres-humanos.ghtml

[3] Campbell, Joseph, As transformações do mito. São Paulo: Cultura, 2015.

 

Imagem da Fazenda Giori, no Espírito Santo
Imagem da Fazenda Giori, produtora de café robusta biodinâmico e orgânico, no Espírito Santo

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