Por Dra Mônica Lopes, bióloga, cientista do Instituto Butantã, durante o Fórum Internacional de Agricultura Orgânica e Sustentabilidade
O impacto do agrotóxico na saúde dos brasileiros nos últimos 6 anos
Foi exatamente quando eu era muito pequenininha que eu me apaixonei pelo meio ambiente, descobri que queria estudá-lo.
Esse meio ambiente me deixava perplexa.
Eu gostava de ver a natureza, os animais, de respirar um ar puro, de ficar atenta às águas transparentes e mornas do lugar onde nasci, Maceió. Foi aos meus pais e avó que eu disse:
Eu quero estudar a natureza vegetal e animal. Descobri ali que eu queria ser bióloga, aquela que estuda o ser vivo. E para isso entrei na universidade cursando biologia.
Já bióloga, percebi que aquela natureza estava diferente de quando eu era pequenininha.
Esse meio ambiente tinha se transformado. Agora eu tinha um mar cheio de lixo, os rios cheios de lama, florestas e campos desertos, um ar totalmente poluído pelos agrotóxicos.
Não tinha mais o animal, o vegetal, o ser vivo pelo qual me apaixonei, me perguntei então:
“Que espécie é essa que está provocando toda a transformação neste ambiente?
Que ser é esse que provoca toda essa destruição?
A espécie homo sapiens! Somos nós!
E o que se fala sobre o homo sapiens?
Homo sapiens é o homem sábio.
É o homem que se diferencia das demais espécies porque tem autoconsciência, racionalidade e sapiência.
Ele tem um cérebro desenvolvido. Será?
Convido você para que junto comigo pense nesse ser, nesse homo sapiens que somos nós.
Acredito que paramos e perdemos a capacidade de pensar, de sermos autoconscientes, de termos nossa racionalidade e a nossa sapiência.
Precisamos resgatar essas características que são do homo sapiens.
É sobre o homo sapiens que eu quero falar, porque foi o homo sapiens que introduziu o agrotóxico, o pesticida. Portanto é nossa responsabilidade.
E sabe por que isso aconteceu? Os agrotóxicos surgiram no século XX.
Vieram com a Revolução Verde, com a grande ideia de que eles iriam combater as pragas e nós iríamos ter o aumento da produtividade.
É preciso voltarmos a pensar e adquirirmos novamente conhecimentos para refletir sobre o que está acontecendo.
Pesticida é um termo que foi dado lá fora, agrotóxico é o nome que foi dado quando chegou ao Brasil. O nome foi dado pelo pesquisador Adilson Paschoal, que tive a honra de conhecer. Ele foi buscar esse nome na origem grega, onde agro significa campo e tóxico significa veneno.
Ele é tóxico, e tem que ser mesmo para poder matar a praga. Atualmente querem substituir o nome por defensivo químico, defensivo agrícola e/ou pesticida.
O que quer que seja, não irá tirar dele a sua característica principal que é ser tóxico, que é matar. A Lei sobre agrotóxico nos diz: “…são produtos químicos destinados a uso dos setores de produção no armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas, pastagens, proteção de florestas nativas ou implantadas e de outros ecossistemas.
E também de ambientes urbanos e industriais”.
A lei afirma que, “sua finalidade é alterar a composição da fauna ou flora a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos.” Quem será o ser vivo considerado nocivo nesta história? “…bem como substâncias e produtos empregados como desfolhantes, dessecantes, estimulantes e inibidores de crescimento…” Na sua finalidade de combater pragas, o agrotóxico vai matar insetos de maneira indiscriminada e um dos insetos que ele vem matando é a abelha. Sem a abelha não existe polinização.
Ela é responsável por 70, 80, 90 por cento da polinização de tudo o que é alimento e tem semente.
O agrotóxico além de matar as abelhas vem mudando o seu comportamento. E lá atrás quando o homo sapiens disse que o agrotóxico aumentaria a produtividade, o Brasil passou a incentivar a história fazendo com que as pessoas comprassem agrotóxicos.
Em 1975 o Brasil criou o Plano Nacional de Desenvolvimento Agrícola, com o objetivo de incentivar o uso de agrotóxico e oferecer investimento aos agricultores que utilizassem e as indústrias que o produzissem.
De lá para cá existe uma enxurrada de incentivos financeiros para o uso, compra e comercialização de agrotóxicos. Nos últimos 14 anos, o BNDES emprestou quase 360 milhões de reais a empresas do setor com juros subsidiados pelo governo.
A Finep, Financiadora de Estudos e Projetos, transferiu 390 milhões de reais a grandes produtores do agronegócios para pesquisa e inovação. Existem ainda linhas de créditos para compra de agrotóxicos, tudo isso só aumenta o uso destes pesticidas.
O último Censo nos mostrou que houve um aumento de 36% no uso de agrotóxicos.
E para a tristeza de todos nós, a agricultura familiar, que coloca o alimento em nossa mesa está dia a dia consumindo e utilizando mais agrotóxico, porque é financiada para isso.
80% do consumo de agrotóxicos é utilizado pelas monoculturas, pelas commodities: o algodão, o milho, a soja e a cana de açúcar.
Nós, homo sapiens, concluímos: “Vamos implantar o agrotóxico, ele vai combater as pragas, vai aumentar a produtividade e assim não haverá fome.” Ele vai combater a fome! Essa foi a grande promessa na introdução do agrotóxico.
Eu pergunto: A fome acabou? A última reportagem da ONU diz que há 820 milhões de pessoas com fome no mundo. 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil.
A promessa não se cumpriu. 125 milhões de brasileiros nessa condição, sendo 59 milhões em insegurança leve, 31 milhões em insegurança moderada e 33 milhões em insegurança grave, passando realmente fome.
E onde está o agro, que dizem, é parte da economia que salva o Brasil? Por que esse dinheiro não está chegando na mesa de todo mundo? Por que as pessoas estão passando fome? O que o agrotóxico fez não foi combater a fome.
Um fotógrafo argentino fotografou no país dele o que o glifosato, que é um dos maiores agrotóxicos vendidos no mundo e aqui no Brasil está presente em quase todos os produtos, causa para a saúde humana. Atrofia muscular, mutações genéticas, câncer, hidrocefalia, retardo mental são algumas das doenças expostas nas imagens.
Pablo Piovano retrata nas fotografias o real impacto do agrotóxico.
E essas imagens não são para fecharmos os olhos, e sim para causar em nós uma indignação que gere uma reação. Que faça com que tenhamos ação.
Não combateu a fome, está acabando com o nosso solo e está causando doenças. Isso é para trazer a nós desassossego, nos tirando da zona de conforto para nos fazer acordar e lutar. Essas cenas da Argentina também acontecem no Brasil.
Em 2019 fui convidada a desenvolver um trabalho ao lado de um pesquisador da Fiocruz e avaliei 10 agrotóxicos largamente utilizados no Brasil.
Testei as doses consideradas ideais no modelo experimental e quando fiz essa avaliação vi que causava, ou mortalidade ou anomalias, e conclui por fim que não existem doses seguras de agrotóxicos. Pesquisadores de diferentes Universidades do Brasil estão estudando os agrotóxicos e devemos continuar a fazer isso.
É preciso estudá-los para mostrar o que eles causam. A “torneira” está aberta e a cada mês muitos agrotóxicos estão sendo liberados aqui. Estamos chegando a 5000. Destes, 1082 extremamente tóxicos, 117 altamente perigosos ao meio ambiente.
Dos que estão liberados, somente 1750 concedidos no governo atual, 30% são proibidos lá fora porque são altamente perigosos para os seres humanos.
E aqui no Brasil liberados, como se nós fossemos diferentes. Existe um trabalho que nos mostra que o Brasil consome, em média, 7,5 kg de agrotóxicos por habitante, a cada ano.
Isso é insuportável, mas além dos 1750 que foram liberados oficialmente existem aqueles que entram clandestinamente sem que haja uma fiscalização efetiva.
Para que um agrotóxico seja liberado precisa passar pela avaliação do Ministério da Agricultura, Ministério da Saúde e Ministério do Meio Ambiente.
E por quê estamos ficando doentes? Porque ele está presente no ar, aquele que era um ar puro quando eu era criança. A pulverização aérea representa a forma mais nociva de agrotóxico no meio ambiente porque o vento o carrega. E nós não podemos controlar o vento.
E como se não fosse suficiente temos agora os drones. E chamam a isso de tecnologia!!
Uma pesquisa da Embrapa mostra que, de tudo o que é pulverizado, 32% fica na planta, 49% no solo e 19% vai para o vizinho. 49% que vai para o solo desce para o lençol freático e vai para a nossa água. “Pulverização aérea – uma forma de aplicação de defensivos para o controle rápido e assertivo”, por definição.
Como pode ser assertivo se ele vai para o vizinho, se vai para o lençol freático e apenas 32% fica na planta? Como podemos chamar isso de assertivo?
Quando você diz que vai parar no vizinho, podemos lembrar das manchetes que diziam a pouco tempo nos jornais: “Agrotóxicos são lançados por avião em crianças de comunidades em disputa por terra.”
Usam o avião, que além de contaminar o produtor vizinho para expulsá-lo da terra, ainda contamina os seus filhos, que são crianças inocentes.
Agrotóxico é caso de justiça, muito se luta para que algo de justiça aconteça nessa comunidade. Em levantamentos feitos em 2018 e 2019 estão apontados que substâncias com maiores riscos de gerar doenças crônicas como câncer estão presentes na água.
Os agrotóxicos estão presentes na água. E nem todos os municípios fazem esses levantamentos. Estamos bebendo um coquetel de agrotóxicos.
Alta concentração que provocou a morte de peixes na represa Billings, como noticiado. Agrotóxicos são a segunda maior causa de contaminação na água do Brasil, perdendo apenas para o esgoto.
Quero lembrar que a saúde é um direito de todos, está em nossa Constituição. Temos direito a ter uma água potável. Nós pagamos por ela.
Temos direito de saber o que está acontecendo com a nossa água. Sem água saudável, o alimento não será saudável também.
O último Programa de Análise de Resíduo de 2017/2018 nos mostrou que, de todos os alimentos que consumimos, apenas 14 foram examinados. E da mesma forma apenas 270 agrotóxicos foram examinados.
Em todos os alimentos examinados foi detectado agrotóxico. Além de detectar o teor de agrotóxicos, ainda nos mostrou qual foi o índice dos agrotóxicos não autorizados presentes nos alimentos. Estamos consumindo um coquetel.
Os produtos ultraprocessados consumidos por crianças estão apontados nas pesquisas com alto teor de agrotóxico.
E nós estamos apenas olhando para tudo isso, sem que façamos algo. Estamos convivendo com o agrotóxico em todas as lavouras pelo Brasil inteiro.
É uma dura realidade. Está presente na água, no alimento, no ar, ele está em nosso dia a dia.
De acordo com o trabalho que desenvolvi, que é uma síntese de 51 artigos científicos, evidencio as doenças e consequências causadas em humanos pelo agrotóxico.
São elas: câncer infantil (principalmente), câncer de tireoide, infertilidade, suicídios, problemas hormonais, e uma série de doenças muito graves.
Nós não podemos ficar parados diante disso tudo, mesmo que isso nos traga transtornos pessoais ou coletivos, não podemos ficar passivos diante do que está acontecendo.
Não é um problema apenas do homem do campo e sim de todos nós.
O ideal é que tivéssemos políticas públicas para mudar esse quadro.
Podemos ter o querer coletivo para mudar essa realidade. Podemos nos mobilizar para viver e ter uma vida saudável. Eu quero viver uma vida saudável, mas para ter essa vida eu preciso lutar por ela. Não basta ir a uma feira e comprar um produto saudável.
Ter dinheiro para comprar uma água potável e um produto orgânico é fácil, tenho na realidade é que lutar para que todos tenham acesso a uma água potável e a um produto orgânico.
Somente mobilização social e políticas públicas vão conquistar isso. Precisamos enquanto cidadãos e sociedade voltar a ser homo sapiens, voltar a pensar com autoconsciência e a se mover em ação.